Entre o populismo, a desinformação e o ataque sistemático à democracia, a extrema direita brasileira se revelou, mais do que uma ideologia, uma ameaça permanente à estabilidade institucional do país.
Desde que começou a ganhar força no Brasil, a extrema direita tem adotado uma estratégia clara: fragilizar a confiança nas instituições, promover o descrédito dos poderes estabelecidos e pavimentar o caminho para uma democracia de fachada — onde os ritos são preservados, mas o conteúdo é esvaziado. A democracia brasileira, já marcada por desigualdades históricas, passou a ser constantemente testada por narrativas autoritárias, revisionismos e ações coordenadas que tinham (e têm) como alvo o próprio Estado de Direito.
O discurso contra o “sistema” foi instrumentalizado para justificar todo tipo de ruptura simbólica com os pilares da democracia: o Judiciário foi tratado como inimigo, o Congresso como obstáculo, a imprensa como inimiga do povo. Em vez de valorizar a pluralidade de ideias, o que se viu foi o incentivo à polarização extrema, à desinformação sistemática e ao culto à personalidade — típicos ingredientes de regimes populistas e antidemocráticos.
Durante esse processo, a liberdade de expressão foi sequestrada e distorcida. Críticas ao Judiciário foram transformadas em campanhas de linchamento moral; o direito de divergir foi sufocado pela máquina de ataques digitais. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, passou a ser atacado como “ditadura togada” sempre que se opunha aos interesses da agenda extremista. O objetivo não era apenas contestar decisões — era destruir a legitimidade da Corte perante a opinião pública.
O mesmo se viu com o sistema eleitoral. A urna eletrônica, símbolo de uma das democracias mais eficientes do mundo em apuração de votos, passou a ser alvo de campanhas de difamação, fake news e teorias conspiratórias. O que antes era motivo de orgulho, passou a ser vendido como fraude, sem qualquer evidência concreta. Esse tipo de ataque sistemático não tinha como meta melhorar o sistema, mas minar a fé coletiva na democracia como forma de governo.
Paralelamente, os ataques à imprensa livre se intensificaram. Jornalistas passaram a ser alvo de hostilidade direta — tanto verbal quanto física. Grandes veículos foram pintados como inimigos da nação. O objetivo, mais uma vez, era centralizar a verdade em uma única fonte: a palavra do líder, do grupo, da seita ideológica. Sem imprensa livre, não há democracia funcional. E isso a extrema direita sabe — por isso combate com tanta ferocidade quem ousa fazer jornalismo independente.
A extrema direita brasileira também se aliou a setores radicais das Forças Armadas, das polícias militares e de grupos paramilitares. As ameaças de golpe, antes disfarçadas de bravatas, foram se tornando mais organizadas. A culminação desse projeto de corrosão institucional veio com os atos de 8 de janeiro: uma tentativa explícita de subverter a ordem democrática e instaurar o caos. A cena dos Três Poderes sendo invadidos não foi um surto isolado — foi o ápice de um plano cultivado por anos.
Em vez de promover reformas estruturais, a extrema direita preferiu enfraquecer os mecanismos de controle. Cortes na educação, na ciência e na cultura foram celebrados como vitórias contra o “marxismo cultural”. A destruição do diálogo, o isolamento diplomático do Brasil e o desprezo pela verdade científica revelaram que o projeto extremista não é apenas antidemocrático — é anti-intelectual, autoritário e desumano.
Ao enfraquecer as instituições, a extrema direita tentou fortalecer o poder de poucos às custas de todos. Mas a democracia, mesmo ferida, mostrou resiliência. A reação dos poderes, das entidades civis, da imprensa e da sociedade organizada foi fundamental para conter os retrocessos. Ainda assim, as cicatrizes permanecem — e o alerta continua.
A pergunta que fica é: quantas vezes mais as instituições brasileiras resistirão a esse tipo de ataque contínuo? A democracia precisa de vigilância, mas também de coragem. E cabe à sociedade civil decidir se continuará tolerando a corrosão lenta da liberdade ou se finalmente colocará um limite claro à barbárie travestida de opinião.
Sob o olhar do materialismo histórico, o avanço da extrema direita no Brasil não deve ser visto apenas como um desvio autoritário ou um fenômeno cultural, mas como uma reação orgânica das classes dominantes diante do esgotamento do modelo neoliberal e do aumento das tensões sociais causadas pelas desigualdades estruturais do sistema capitalista. Quando a democracia liberal — já limitada em sua essência, por operar dentro de uma ordem que preserva a propriedade privada dos meios de produção — começa a ameaçar interesses concretos das elites econômicas (por meio, por exemplo, de políticas redistributivas ou de inclusão social), estas recorrem a soluções autoritárias para restaurar a “ordem”, ou seja, a sua hegemonia.
A retórica antissistema da extrema direita, portanto, serve a um propósito específico: desviar o foco da luta de classes real, deslocando a insatisfação popular para inimigos imaginários (como o “globalismo”, o “marxismo cultural”, ou o “sistema corrupto”), enquanto protege os verdadeiros detentores do poder econômico. Essa estratégia ideológica é útil para manter as massas desorganizadas, desinformadas e divididas, o que impede o fortalecimento de movimentos populares com consciência de classe.
O ataque às instituições democráticas, ao Judiciário, à imprensa e à educação pública, sob a ótica marxista, não é aleatório: são essas instituições que, ainda que de forma contraditória, podem oferecer instrumentos de mobilização, crítica e emancipação da classe trabalhadora. O desmonte desses espaços e o incentivo ao obscurantismo visam neutralizar qualquer possibilidade de transformação social autêntica, mantendo o status quo.
Em suma, o avanço da extrema direita, conforme descrito no texto, pode ser compreendido como um movimento reacionário de defesa da ordem capitalista, travestido de revolta popular. Sua função histórica é barrar a organização da classe trabalhadora, enfraquecer a consciência política e legitimar formas cada vez mais violentas de controle social, em nome da “liberdade” — uma liberdade que, como apontaria Marx, é apenas a liberdade do capital de explorar o trabalho.
Ronan, sua análise é brilhante e extremamente pertinente. Ao trazer o olhar do materialismo histórico, você amplia o debate e nos lembra que o avanço da extrema direita não é um desvio isolado, mas parte de uma engrenagem sistêmica mais profunda. Destacar o papel ideológico da retórica antissistêmica, bem como o ataque à educação e à consciência de classe, é essencial para entendermos os riscos atuais. Muito obrigado por contribuir com reflexão crítica de alto nível — seguimos firmes no propósito de ampliar vozes que incomodam.