Brasil, o País que Esquece de Propósito

O Brasil não tem memória curta. Tem memória seletiva. E o mais grave: tem memória manipulada. Ao longo dos séculos, nossa história foi sendo contada, apagada, recontada — sempre de acordo com o interesse de quem estava no poder. Cada mudança de regime, cada novo governo, cada elite dominante, cuidou de moldar o passado conforme suas necessidades do presente.

Nas escolas, aprendemos sobre Dom Pedro gritando “Independência ou Morte!”, pintado como um herói épico à beira de um riacho. Mas quase nada se fala sobre os interesses ingleses por trás daquele ato ou sobre o fato de que a independência brasileira foi, na prática, uma transferência de poder dentro da mesma elite colonial. Pouco se fala também sobre os negros que, mesmo libertos pela canetada da princesa, seguiram sem terra, sem trabalho, sem indenização — e sem nome. A abolição foi um gesto simbólico e conveniente, que permitiu ao Império posar de civilizado sem jamais desmontar a estrutura escravagista que sustentava o país.

Estudamos o ciclo do ouro, o do café, o da borracha… Mas raramente refletimos sobre o ciclo da desigualdade que se perpetuou em cada um deles. A riqueza gerada nesses ciclos não foi distribuída. Ela foi concentrada. Ela ergueu casarões, palacetes e fortunas familiares que ainda hoje estão no topo da pirâmide. Enquanto isso, os trabalhadores que produziram essa riqueza — quase sempre negros, indígenas, camponeses — foram descartados da narrativa.

Quando falamos em República, celebramos datas, hinos e militares como se estivéssemos contando uma epopeia. Ignoramos que a República nasceu sem povo, sem voto, sem legitimidade popular. Um golpe palaciano, arquitetado por uma elite militar e agrária, que não incluía os interesses das massas. O povo, esse detalhe incômodo, só foi chamado a votar muito tempo depois — e mesmo assim, de forma controlada, censitária e manipulada. A história da República é, em grande parte, a história de como se evitou uma verdadeira democracia.

Passamos por ditaduras, golpes, censura e repressão — e o que ficou? Nostalgia. O Brasil é um dos poucos países onde torturadores viram nome de ponte, onde há viúvas da ditadura desfilando em avenidas, onde um presidente eleito chega a dizer que “o erro foi torturar e não matar”. Isso não é só descaso. É projeto. É cultivo consciente da ignorância histórica como ferramenta de controle social.

Nossa história oficial é feita de heróis de mármore e vilões invisíveis. Zumbi dos Palmares é citado com desconfiança, enquanto bandeirantes ganham nomes de avenidas, estátuas e instituições. Revoltas populares são reduzidas a rodapés nos livros. A Guerra de Canudos é chamada de “fanatismo”, a Revolta da Chibata é “indisciplina militar”, a Cabanagem é uma nota de rodapé. A escravidão, com seus mais de 300 anos de brutalidade sistemática, é tratada como um “período difícil” — um eufemismo cruel para o maior crime da nossa história.

O Brasil, como projeto de nação, se construiu sobre o esquecimento conveniente. A história foi higienizada para caber no currículo escolar sem causar desconforto. Por isso, quando surgem vozes pedindo justiça histórica — seja na forma de cotas, de reconhecimento aos povos originários, ou de reparações — a resposta ainda é: “pra que mexer no passado?” Como se o passado não vivesse em cada esquina. Como se o presente não fosse o espelho invertido do que se omitiu ontem.

Tentativas de contar outras versões são imediatamente taxadas de “revisionismo ideológico”. Como se houvesse apenas uma versão legítima: a oficial, a do colonizador, a dos vencedores. Mas a história verdadeira é feita de conflitos. É feita de vozes abafadas, de silêncios impostos, de dores que precisam ser lembradas, e não apagadas.

A verdade é que o Brasil não precisa de mais estátuas. Precisa de mais livros, mais memória, mais escuta. Precisa ensinar que a Independência foi negociada, que a República foi imposta, que a Abolição foi incompleta. Precisa mostrar que por trás de cada data comemorativa há uma história complexa, suja, contraditória — mas real.

Enquanto continuarmos ensinando o 7 de setembro como um ato de bravura, ignorando os levantes populares, as traições políticas e os interesses internacionais que moldaram esse país, seguiremos repetindo as mesmas tragédias. Só mudam os personagens e as desculpas.

O Brasil precisa parar de esquecer por conveniência. E começar a lembrar por consciência.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *