Há algo de profundamente inquietante no comportamento coletivo de boa parte dos seguidores de Jair Bolsonaro. Muito além de uma identificação política ou de uma preferência partidária, o que se vê é a formação de uma estrutura simbólica e emocional que remete ao funcionamento típico de uma seita. Não se trata de mera figura de linguagem. O bolsonarismo incorporou traços tão intensos de culto à personalidade, negação da realidade, doutrinação ideológica e fé cega, que seria um erro classificá-lo apenas como “direita radical” ou “movimento conservador”. O fenômeno, em sua essência, é sectário — e isso explica por que continua a ter força mesmo diante de denúncias, fracassos de gestão, escândalos e atitudes antidemocráticas do seu líder máximo.
O culto à personalidade talvez seja o ponto mais visível dessa estrutura. Bolsonaro não é tratado como um político comum, com acertos e erros, mas como um ente quase místico, um homem escolhido por Deus, ungido para cumprir uma missão salvadora no país. Quando suas falas são absurdas, seus atos são cruéis ou suas omissões custam vidas, seus devotos oferecem justificativas automáticas: “Ele fala assim mesmo”, “pelo menos é sincero”, “os outros fariam pior”. Nada abala a devoção. A crítica, mesmo a mais técnica e fundamentada, é percebida como heresia. O que importa não é o conteúdo da denúncia, mas quem a faz — se vem da imprensa, da esquerda, da Justiça, então está automaticamente desqualificada. Essa relação emocional entre líder e massa, blindada contra qualquer revisão racional, é típica de cultos totalizantes.
Como observa o cientista político Pablo Ortellado, o bolsonarismo constrói uma identidade baseada na emoção coletiva e na rejeição das instituições, criando um ambiente mais próximo da fé do que do debate público. Isso reforça o caráter de seita política que sustenta o movimento, mesmo após derrotas, crises e escândalos sucessivos.
A negação da realidade é outro traço essencial da seita. Não há espaço para fatos incômodos, estatísticas confiáveis ou análises imparciais. Tudo que não se encaixa na narrativa do bolsonarismo é descartado como mentira ou conspiração. Os dados sobre a pandemia foram rejeitados, os alertas sobre a destruição da Amazônia foram tratados como complô globalista, os escândalos envolvendo rachadinhas, joias ilegais, milícias e interferências na PF foram ignorados ou minimizados. A realidade é filtrada por um sistema de crenças que funciona como dogma. E dogmas, por definição, não se discutem: aceitam-se. Nesse ambiente, até mesmo os crimes do bolsonarismo são reinterpretados como virtudes — “se ele roubou, foi menos que os outros”, “se cometeu excessos, é porque quer proteger o povo”. A razão se curva diante da fé.
O bolsonarismo também se alimenta da criação constante de inimigos imaginários. Para manter a coesão do grupo e evitar fissuras internas, é preciso sempre apontar quem está “contra o bem”. STF, artistas, professores, indígenas, jornalistas, universidades, movimentos sociais, ONGs, ambientalistas, o Papa — todos já foram atacados como ameaças. A lista de adversários cresce à medida que a paranoia se aprofunda. Isso é eficaz: ao construir uma sensação de cerco permanente, os fiéis do bolsonarismo reforçam sua lealdade ao grupo, como quem protege uma igreja sitiada por forças demoníacas. É a velha tática sectária de separar o mundo entre “nós” e “eles”, entre os “escolhidos” e os “inimigos de Deus”. Essa lógica, além de perigosa, impede qualquer diálogo racional e destrói o tecido democrático.
Outro elemento notável é a completa distorção do conceito de democracia. Para os bolsonaristas mais fiéis, a democracia só é válida quando serve para manter Bolsonaro no poder. Se ele ganha, o sistema funciona. Se perde, é fraude. Se é investigado, é perseguição política. Se é impedido por decisões legais, é censura. Assim, cria-se uma estrutura em que o regime democrático é visto não como um valor universal, mas como uma ferramenta circunstancial — e dispensável, caso não sirva aos propósitos do grupo. Isso justifica até mesmo o apoio à ruptura institucional, como se viu nos atos de 8 de janeiro, que não foram um acidente isolado, mas o ponto culminante de uma construção simbólica que vinha sendo cultivada havia anos. O bolsonarismo ensinou seus seguidores a duvidar das urnas, da Justiça, da imprensa, da ciência — e a confiar apenas no líder e em seus emissários. Esse tipo de doutrina autoritária não se diferencia muito das práticas de seitas totalitárias ao longo da história.
Por fim, não se pode ignorar o aspecto quase religioso que envolve o movimento. Há orações por Bolsonaro em igrejas, manifestações com pastores que o chamam de “enviado de Deus”, fiéis que o defendem com versículos bíblicos e que enxergam sua sobrevivência política como uma missão divina. Esse vínculo com o neopentecostalismo político é um dos pilares mais eficazes do bolsonarismo. Ao misturar fé religiosa com política autoritária, cria-se uma blindagem quase absoluta. Criticar Bolsonaro se torna, para muitos, um ataque à sua religião — ou a Deus em si. Essa fusão entre sagrado e poder político é explosiva, pois apaga as fronteiras entre o espiritual e o público, entre o dogma e o debate, entre o púlpito e o palanque.
O Brasil vive, portanto, não apenas um conflito político, mas uma batalha simbólica. O bolsonarismo não é só um movimento de direita, nem tampouco um partido. É uma estrutura ideológica de fé, medo, obediência e irracionalidade. E como toda seita, sobrevive mesmo sem razão, mesmo sem provas, mesmo sem vitórias. Sobrevive porque é construída não sobre argumentos, mas sobre crenças. Enfrentá-la exige mais do que fatos: exige coragem intelectual, resgate da racionalidade e compromisso com o debate público. E sobretudo, exige que deixemos de tratar esse fenômeno como apenas mais uma corrente ideológica. Porque não é. É uma seita. E se não for contida, seu dano à democracia será mais profundo do que imaginamos.
🔗 Leitura complementar:
Se você se interessa por esse tipo de análise crítica, recomendamos também o artigo Câmara dos Deputados: Quando se Invoca um Poder que Não Tem — uma reflexão sobre o uso político distorcido das instituições democráticas no Brasil.
O canalImpério360 é uma plataforma de conteúdo crítico e independente sobre política, economia, justiça e geopolítica. Presente no YouTube e no site oficial, o projeto busca informar e provocar reflexão, com responsabilidade editorial e compromisso com o interesse público.