Em um Estado Democrático de Direito, as decisões do Poder Judiciário, especialmente aquelas oriundas da mais alta corte do país, possuem caráter vinculante e devem ser cumpridas por todos os entes e instituições. Ainda assim, não é raro observar iniciativas legislativas que tentam subverter essa ordem, colocando em pauta votações que, por natureza, não possuem validade jurídica frente a uma decisão constitucional já consolidada.
O movimento de submeter ao voto parlamentar uma matéria já pacificada judicialmente é, em essência, um gesto político com pretensões simbólicas. Não há efeito jurídico prático — afinal, decisão judicial se cumpre, não se negocia. O objetivo é outro: confrontar, tensionar, gerar ruído institucional. É um modo de demonstrar força onde, na verdade, há apenas teatro.
Esse tipo de manobra não busca aprimorar leis nem atender demandas da população. Trata-se de um artifício retórico, de uma encenação construída para reforçar uma narrativa: a de que o Parlamento teria a última palavra sobre tudo, inclusive sobre aquilo que já foi decidido de forma legítima e constitucional pelo Judiciário. Em outras palavras, uma tentativa de recriar, informalmente, um poder moderador.
Como também analisamos no artigo Câmara dos Deputados: Quando se Invoca um Poder que Não Tem, o Parlamento vem sendo usado como palco de enfrentamento simbólico mais do que de função legislativa.
O Brasil já teve, no passado imperial, uma estrutura em que o poder moderador permitia ao imperador interferir nas decisões dos demais poderes. A Constituição republicana de 1988 sepultou essa lógica, distribuindo competências de forma clara e autônoma entre Executivo, Legislativo e Judiciário. A tentativa de parlamentares de hoje de revisar, invalidar ou contrariar decisões da Justiça em plenário é uma distorção grave dessa arquitetura institucional — uma espécie de “neo-moderador” travestido de voto.
A quem serve esse tipo de afronta? Em geral, a interesses específicos, muitas vezes ligados à autoproteção ou ao desejo de enfraquecer instituições que ainda funcionam como freio para abusos. O Judiciário, com todos os seus defeitos, ainda exerce um papel crucial na defesa de direitos e na contenção de práticas abusivas. Ao tentar esvaziá-lo, certos setores do Legislativo não agem em nome do povo, mas em nome de seus próprios escudos.
Como destacou o jurista Joaquim Falcão, “a independência entre os poderes não é luxo institucional — é base civilizatória. Romper esse pacto abre espaço para o arbítrio, e não para o avanço democrático”.
Mais grave ainda é o precedente que esse comportamento tenta estabelecer. Ao tratar decisões judiciais como sugestões passíveis de reversão por maioria circunstancial, esvazia-se o sentido do direito. É como se cada poder pudesse operar de forma isolada, ignorando os freios e contrapesos que garantem a estabilidade institucional do país.
Essa retórica de enfrentamento, disfarçada de “autonomia do Legislativo”, revela na verdade um desconforto com os limites que a lei impõe. A lei, para esses atores, só serve enquanto conveniente. Quando não os favorece, tentam redesenhar o tabuleiro, rasgando as regras sob o pretexto de estarem “representando o povo”.
A democracia não se sustenta apenas pelo voto. Ela depende do respeito às instituições, do equilíbrio entre os poderes, e da disposição de cada um deles de reconhecer suas fronteiras. Quando esse pacto é rompido, quando um poder tenta se sobrepor aos demais — como se tivesse herdado um poder moderador que jamais lhe foi concedido — o risco não é apenas político. É estrutural.
O Legislativo não pode se confundir com um tribunal de exceções políticas. Ao usar o voto como forma de retaliação institucional, abre-se um precedente perigoso para a normalização do abuso de poder travestido de legalidade. Não se trata de proteger o Judiciário por conveniência, mas de proteger o sistema como um todo. Quem desequilibra os poderes, enfraquece a democracia.
Aos olhos da história, não serão os votos em plenário que legitimarão tais manobras, mas o grau de responsabilidade institucional com que os representantes do povo souberem lidar com os limites da própria função. O Parlamento tem a nobre missão de legislar. Usar essa função para desafiar decisões da Justiça é desvirtuar o papel para o qual foi eleito.
🔗 Leitura complementar:
Para aprofundar sua reflexão sobre a fragilidade institucional no Brasil contemporâneo, sugerimos também o artigo Bolsonarismo: Quando a Política Vira Seita, que discute o uso simbólico da fé, da polarização e do populismo como ferramentas de erosão democrática.
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