O silêncio dos quartéis nos últimos meses não significa ausência de influência. Depois de ocuparem cargos-chave no governo anterior, interferirem diretamente em decisões administrativas e serem protagonistas em escândalos de desvio de conduta, os militares parecem ter recuado estrategicamente. Mas essa aparente retirada não apaga a presença ainda latente das Forças Armadas na política brasileira. O momento atual exige uma análise mais sutil: os militares saíram dos holofotes, mas não necessariamente do poder.
A tentativa de golpe investigada pelo Supremo Tribunal Federal e os documentos já tornados públicos mostram que não se tratava apenas de uma fantasia autoritária de civis exaltados. Generais da ativa e da reserva estavam conscientes, articulavam movimentos e, em alguns casos, colaboravam com a sustentação de uma ruptura institucional. O episódio do 8 de janeiro apenas expôs o que já era cultivado nos bastidores: uma politização das Forças Armadas que vinha sendo alimentada desde os anos finais da Lava Jato e consolidada com a chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto. Durante quatro anos, generais ocuparam ministérios, gabinetes, estatais e o próprio Palácio do Planalto, sem qualquer resistência institucional relevante. Saíram da sombra e operaram o Estado como agentes de um projeto político-ideológico, e não como servidores da Constituição.
Diante desse histórico, a postura do governo Lula beira a negligência. Ao assumir o cargo em 2023, o presidente optou por uma estratégia de pacificação institucional, que incluiu a manutenção de oficiais em cargos-chave, a recusa em investigar abusos de forma ampla e, principalmente, a omissão diante dos vínculos cada vez mais evidentes entre militares e golpistas. O governo apostou na estabilidade formal, mesmo diante de sinais de que parte do alto comando das Forças não havia se comprometido plenamente com o regime democrático. Essa leniência é perigosa. O ovo da serpente pode estar sendo chocado, silenciosamente, nos corredores das academias militares, nos grupos fechados de WhatsApp de oficiais da reserva, ou mesmo nas fileiras mais jovens, que seguem expostas a discursos anacrônicos, autoritários e messiânicos.
A influência não se manifesta apenas nas declarações públicas ou em cargos ministeriais. Ela sobrevive na lógica de proteção mútua, nas resistências institucionais ao avanço das investigações e nas reações organizadas sempre que algum militar de alta patente é exposto. Há ainda um setor político, dentro do Congresso, que segue dependente do aval informal das Forças Armadas, como se a estabilidade democrática tivesse que ser, de tempos em tempos, carimbada pelos generais.
Como observou a historiadora Heloisa Starling, “quando a farda se mistura ao governo, quem sai derrotada é a República”. A ausência de tanques nas ruas não significa que a lógica autoritária foi superada — ela apenas se redesenha nas sombras.
O risco não está apenas na memória do que aconteceu, mas na permanência do que não foi desmontado. A democracia brasileira corre perigo quando confunde conciliação com impunidade. Os militares que conspiraram contra a ordem constitucional seguem protegidos por uma rede que opera dentro e fora dos quartéis. Enquanto isso, o governo finge que resolver o problema significa apenas tirar os fardados da frente das câmeras.
Enquanto o Judiciário avança sobre os envolvidos na tentativa de golpe e o Ministério Público tenta reconstruir a linha do tempo da conspiração, o país se depara com a difícil missão de repensar os limites entre o poder civil e o militar. Afinal, um regime democrático não deveria conviver com zonas cinzentas de influência fardada. A ausência de confrontos diretos não significa ausência de riscos. A ausência de barulho não significa ausência de projeto.
A cada dia que passa sem responsabilização real, sem corte de privilégios e sem reforma profunda das estruturas de poder militar, o país se afasta do futuro e se ancora, mais uma vez, no passado que finge ter superado.
A reconstrução democrática não passa apenas pelas urnas, mas por uma redefinição clara e inegociável: os quartéis devem servir à pátria, e não aos projetos de poder de ocasião. A cada concessão silenciosa, a democracia se fragiliza. E quando o barulho do próximo golpe ecoar, talvez seja tarde demais para dizer que ninguém viu.
🔗 Leitura complementar:
Para aprofundar a reflexão sobre os riscos à democracia brasileira, leia também o artigo Bolsonarismo: Quando a Política Vira Seita, que analisa como a fé política e a obediência cega podem corroer as instituições por dentro.
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