O artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal é direto e inequívoco: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Trata-se de um dos pilares mais sólidos do Estado Democrático de Direito, cuja razão de ser é impedir que o poder punitivo do Estado seja exercido sem que todas as instâncias recursais tenham sido devidamente analisadas. Não se trata de um detalhe técnico, mas de uma garantia essencial da cidadania, forjada como proteção histórica contra arbitrariedades.
Contudo, mesmo diante dessa clareza textual, o Supremo Tribunal Federal (STF) protagonizou, nas últimas décadas, uma sucessão de reinterpretações que abalaram a estabilidade e a confiabilidade do princípio da presunção de inocência. A Corte, que deveria ser o árbitro final da interpretação constitucional, oscilou entre entendimentos, muitas vezes não por motivações estritamente jurídicas, mas por pressões externas, clamor popular ou interesses momentâneos do ambiente político.
Em 2016, o STF alterou sua jurisprudência e passou a permitir a execução provisória da pena após condenação em segunda instância. A justificativa se apoiava na ideia de que o duplo grau de jurisdição asseguraria o devido processo legal, tornando supostamente dispensável a espera pela manifestação dos tribunais superiores. Tratava-se, à época, de uma tentativa de dar uma resposta institucional às demandas da opinião pública, que cobrava maior celeridade na aplicação das penas.
A mudança não foi neutra. Seu efeito mais imediato foi a prisão de um dos principais líderes políticos do país, que, embora ainda tivesse recursos pendentes nos tribunais superiores, foi encarcerado com base na nova interpretação. Esse episódio emblemático escancarou a relação tensa entre Direito e política, levantando questionamentos sobre a instrumentalização do Judiciário em disputas de poder.
Anos depois, em 2021, o STF voltou ao entendimento anterior, reafirmando que é inconstitucional a execução da pena antes do trânsito em julgado. O retorno à leitura clássica do princípio constitucional pareceu, para muitos, uma reparação tardia. No entanto, o estrago institucional já estava feito. O vaivém jurisprudencial não apenas fragilizou a segurança jurídica, como também comprometeu a imagem de isenção e neutralidade do Supremo.
A presunção de inocência, quando submetida a leituras casuísticas, deixa de ser uma garantia universal e se torna um privilégio incerto. O STF, ao oscilar conforme o contexto político, reduz sua autoridade moral como guardião da Constituição. A interpretação constitucional não pode se submeter à conveniência de turno nem ao jogo de forças momentâneo. O Direito é construído para oferecer estabilidade, previsibilidade e coerência à sociedade.
O princípio do trânsito em julgado não protege culpados: protege inocentes do risco de condenação injusta. Ele não é um obstáculo à Justiça, mas um freio civilizatório contra a barbárie judicial. E quando a mais alta corte do país abdica de sua missão de preservar os fundamentos da ordem jurídica em nome de soluções imediatistas, o que se compromete não é apenas um caso isolado, mas a credibilidade de todo o sistema.
Não se trata de defender indivíduos, mas de resguardar o ordenamento jurídico como um todo. A estabilidade constitucional é condição essencial para a democracia. A função do STF não é adaptar a Constituição ao clamor das ruas ou aos interesses de gabinetes. É, sobretudo, defendê-la com firmeza, mesmo quando isso contraria as pressões externas.
“Quando a Suprema Corte se permite oscilar ao sabor do clima político, a Justiça vacila, e o país inteiro sente os efeitos da instabilidade. A história, implacável como é, não hesitará em julgar — e o veredicto, inevitavelmente, alcançará também os que consentiram com a erosão do direito.”
Vale destacar que, além da Constituição Federal (art. 5º, LVII), o Brasil é vinculado ao art. 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que também protege esse princípio, ainda que sob formulação distinta — lá se exige a “comprovação legal da culpa”, e não o “trânsito em julgado”.
No sistema processual penal brasileiro, a culpa se consolida em segundo grau, pois os tribunais superiores (STJ e STF) não reexaminam fatos. Ainda assim, nossa Constituição adotou um modelo mais protetivo, exigindo o esgotamento de todos os recursos. Isso significa que, mesmo quando a convenção internacional permitir certa flexibilidade, o Brasil se obriga a respeitar o patamar mais alto estabelecido internamente.
Portanto, a oscilação jurisprudencial do STF entre 2016 e 2019 tensionou não apenas a ordem constitucional, mas também a conformidade do Brasil com o sistema interamericano. A atual posição da Corte — que impede a execução da pena antes do trânsito em julgado — alinha-se ao texto constitucional, à legislação infraconstitucional (art. 283 do CPP) e ao entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mais do que uma questão técnica, trata-se da defesa da estabilidade e credibilidade do Estado de Direito.
Olá, Ronan! Agradeço profundamente sua participação e pela contribuição riquíssima ao debate. Seu comentário reforça a importância de olharmos para além do texto constitucional isolado, compreendendo também o papel dos tratados internacionais e a lógica protetiva do nosso sistema jurídico.
Sua análise sobre a exigência da comprovação legal da culpa, e não apenas o trânsito em julgado, traz um excelente ponto de reflexão, sobretudo ao destacar a vinculação do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos. Isso demonstra o quanto a estabilidade jurisprudencial, especialmente no STF, impacta diretamente na credibilidade do Estado de Direito.
Fico muito feliz em ver o nível do debate se elevar com contribuições como a sua. Seguimos juntos na missão de ampliar a consciência crítica e o entendimento jurídico com responsabilidade e profundidade.
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