O silêncio da urna e o grito das ruas

Na década de 1980, o Brasil ainda respirava o ar rarefeito da ditadura militar. Os generais haviam trocado a farda pelo terno, mas a estrutura autoritária seguia intacta — inclusive na escolha do presidente da República, feita indiretamente pelo Congresso Nacional. Foi nesse cenário que emergiu um dos mais poderosos movimentos de mobilização popular da história brasileira: o Diretas Já. Mais do que uma campanha por eleições diretas, tratou-se de um grito coletivo por dignidade, representatividade e ruptura com o entulho autoritário.

O projeto de Emenda Constitucional Dante de Oliveira, protocolado em 1983, propunha o restabelecimento das eleições diretas para presidente. Parecia um simples ajuste institucional, mas reacendeu um sentimento adormecido em milhões de brasileiros que, por duas décadas, haviam sido privados do direito mais básico numa democracia: o voto direto.

A campanha Diretas Já nasceu tímida em comícios isolados, mas cresceu como uma avalanche. Em menos de um ano, reuniu artistas, sindicalistas, jornalistas, estudantes, políticos de oposição e até figuras do empresariado. Foi a primeira vez, desde o golpe de 1964, que a população voltou a ocupar o espaço público com tanta força e legitimidade.

O ápice do movimento veio entre março e abril de 1984, com comícios em várias capitais. O maior deles, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, reuniu mais de 1 milhão de pessoas. O povo havia retomado sua voz — e, com ela, a capacidade de pressionar o sistema.

A estética das Diretas Já era carregada de emoção e simbolismo: faixas amarelas, cartazes feitos à mão, discursos inflamados. Havia algo quase épico na forma como o Brasil se levantava, não mais pela força das armas, mas pela força da rua. Era o país tentando reconstruir sua democracia a partir da base.

Apesar da gigantesca pressão popular, a emenda Dante de Oliveira foi derrotada em abril de 1984, por falta de quórum mínimo. A frustração foi inevitável — mas apenas momentânea. O movimento havia plantado uma semente que os militares não conseguiriam arrancar: a consciência coletiva.

No ano seguinte, ainda de forma indireta, o regime se despedia com a eleição de Tancredo Neves — um nome civil, de oposição, que simbolizava a transição. Embora Tancredo tenha morrido antes de tomar posse, seu vice, José Sarney, assumiu. E em 1989, finalmente, o povo voltou às urnas para eleger diretamente seu presidente pela primeira vez desde 1960.

O Diretas Já foi mais do que uma campanha: foi um divisor de águas. Mostrou que a democracia não se constrói apenas com instituições, mas com participação ativa. Foi o renascimento da cidadania brasileira — e, por isso mesmo, continua atual. Em tempos em que se relativiza o valor do voto e se flerta com saídas autoritárias, lembrar o que foi 1984 é um exercício de memória e resistência.

Se o voto é a ponta visível da democracia, o Diretas Já foi o corpo inteiro dessa vontade popular se movendo. O movimento não conquistou seu objetivo imediato, mas abriu as portas de um novo país — onde o povo, ao menos por um tempo, voltou a ser protagonista da própria história.

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